terça-feira, abril 12, 2005

Sera' que e' desta?

Para variar, esta' um dia fantastico! Nao esta' quente, mas um solzinho que da' gosto! Viva a primavera!
Aqui vai o recorte da crónica do MST, como prometi. Sempre põe as coisas em perspectiva. Pois...

Comece pelo outro, s.f.f.
Miguel Sousa Tavares
Todos os portugueses querem "reformas". Todos, sem excepção. Não há um só que recuse as célebres "reformas", das quais esperamos o milagre de nos tornarmos um país próspero e justo, onde o Estado gasta só o que tem e bem gasto, onde todos cumprem os seus deveres para com a comunidade, onde cessaram os privilégios, as situações de favor e as arbitrariedades. Onde o ensino é factor de desenvolvimento, a saúde competente e a justiça eficaz. Todos querem isto. Mas ninguém quer que as ditas reformas comecem por si, pela sua actividade, pelo seu sector. Para serem aceitáveis, as reformas têm sempre de começar pelo vizinho e por aí se quedarem. Os notários, por exemplo, não gostaram nada da tímida liberalização ensaiada no mandato de Celeste Cardona. A seu ver, tal como estava, o sistema funcionava perfeitamente bem: havia poucos notários, tão poucos que era preciso suplicar pelo favor de uma escritura, as taxas eram caríssimas, o atendimento baseava-se na "cunha" e no poder financeiro do cliente e as condições de trabalho dos funcionários e de atendimento do público eram, por tradição novecentista, dignas de qualquer repartição do Terceiro Mundo. Nunca lhes ocorreu perguntar aos clientes se estavam satisfeitos. Eles estavam: negócio garantido por numerus clausus e imposições legais que garantiam a clientela, custos mínimos, receitas exuberantes sem qualquer correspondência com o serviço prestado. Logicamente, não gostaram da anunciada reforma, tentando convencer-nos que todo o comércio jurídico ficava ameaçado pela entrada intempestiva de "pára-quedistas" no negócio até aí reservado. Porque, como se compreende, é muito complicado e exige grandes conhecimentos técnicos, elaborar um documento onde se atesta que o Senhor A, natural de, filho de, residente em, contribuinte número tal, comprou ao Senhor B, natural de, filho de, residente em, contribuinte número tal, a fracção do prédio X, sita na freguesia e concelho de, inscrito na matriz de, sob o número tal, pelo preço de. Pela contrapartida de nos elaborarem duas folhas dactilografadas a dizer isto, com base nos documentos que nós próprios apresentamos, e o favor de nos ler o conteúdo em voz alta, cobravam-nos e cobram-nos centenas ou milhares de contos - parte para o Estado, parte para eles. Pela mesma razão, também as farmácias não gostaram que o Governo tenha ameaçado retirar-lhe o exclusivo do comércio de aspirinas e afins, que vêem, se calhar justamente, como um primeiro passo para invadir também o seu reservado e sagrado território de negócios, podendo amanhã, quem sabe, o Governo permitir-se o desplante de pôr fim à exigência legal de ter de ser um licenciado em farmácia a possuir o respectivo alvará, de proteger os já existentes em relação a novos candidatos, ou até - suprema arrogância! - ousar torpedear o fabuloso poder financeiro da Associação Nacional de Farmácias, o eterno e tranquilo credor nº1 do Estado. Estes querem-nos convencer que comprar uma aspirina sem a presença vigilante e terapêutica do farmacêutico é uma ameaça à saúde pública.
Também os juízes ficaram incomodados com a parte do programa do Governo que se propõe retirar-lhes um dos dois meses de férias de Verão (e não nos esqueçamos que os tribunais fazem também férias de Natal e de Páscoa). Vários juízes vieram a terreiro defender o seu instalado direito a férias prolongadas, esgrimindo o argumento determinante de que é nesses dois meses de férias de Verão que eles podem ocupar-se dos "processos mais complicados" (estão a ver a mala do carro de um juiz a caminho da praia, carregada de "processos complicados", códigos, colectâneas de jurisprudência e tratados de direito?). Um juiz chegou mesmo a escrever no Expresso que nenhum trabalhador em Portugal tem uma dedicação tão intensa e tão digna à profissão como eles têm. E ameaçava começar a cobrar horas extraordinárias se lhe reduzissem as férias anuais de três para dois meses. Podia-se evitar isto, obviamente, se os processos não demorassem anos, às vezes à espera de um simples despacho a dizer "Notifique-se", ou se fosse aumentado o número de juízes. Mas a classe sempre se opôs ao aumento do número de juízes com o argumento de que isso iria degradar o nível da jurisprudência, partindo da opinião implícita de que mais vale uma boa sentença ao fim de dez anos do que uma má sentença ao fim de dois. Mas, também eles, nunca nos perguntaram a nossa opinião.

A última reacção corporativa em data é a dos professores, que ficaram assustados e indignados com a hipótese de terem de passar a preencher os "furos" das aulas, causados pelas constantes ausências de colegas. Mas os dados à partida são estes: Portugal é, comparativamente, dos países da UE que mais gastam em educação e que mais aumentou os seus gastos nas últimas décadas, com resultados que são cada vez piores. Há um excesso, e não um défice, de professores no sector público, que todos os anos se agrava, em função do encerramento de escolas do interior, ocasionado pelo desequilíbrio territorial e baixa da taxa de natalidade. Os professores portugueses estão, proporcionalmente, no grupo dos mais bem pagos da UE a quinze (se considerarmos a UE com os novos membros, estamos no topo). As férias dos professores do ensino primário e secundário são de tal forma alargadas que, se nos pusermos a fazer contas aos dias sem trabalho, chegamos a estes números extraordinários: 90 dias de férias de Verão, 15 de Páscoa, 15 de Natal, 7 de Carnaval, 7 de feriados, 104 de fins-de-semana. Total: 131 dias de aulas e 234 de folgas. Parece muito, mas ainda não é: os professores portugueses apresentam também o maior índice de baixas por doença ou outros motivos, a nível europeu, e, a nível interno, são provavelmente, o sector sócio-profissional com maior quantidade de faltas justificadas ao trabalho. Com este pano de fundo, pretender que um professor que falte seja de imediato substituído por outro que se encontre disponível parece ser o mínimo exigível e decente para com os alunos - qualquer estabelecimento privado o faz. Além do mais, tem o factor moralizador de responsabilizar o professor que falta sem razão perante o colega que vai ter de o substituir: assim, as faltas deixam de penalizar apenas os alunos. Sim, parece lógico e justo, mas não para todos: o Sindicato dos Professores já se manifestou contra. Por princípio e por tradição. E isto é só o princípio. Quando todos os outros estiverem a gritar - advogados, construtores de obras públicas, futebolistas, autarcas, médicos, artistas subsidiados -, então aí veremos se o país quer mesmo o início das reformas e o fim dos privilégios, ou se quer que tudo continue na mesma, o Estado a endividar-se, o país a continuar a divergir da Europa em índice de crescimento económico e o futuro das gerações que se seguem a ser sabotado pelo egoísmo da actual.

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